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A Agonia do Sistema Financeiro da Habitação
Danilo Santana *

 

Alguns milhares de consumidores adquiriram sua "casa própria" mediante financiamento, concedido pelos agentes do Sistema Financeiro de Habitação, na certeza de que, conforme constava dos seus contratos, as respectivas prestações mensais e saldo devedor seriam corrigidos em sintonia com os reajustes dos salários de suas respectivas categorias profissionais.

Entretanto, de forma autoritária e divorciada do princípio social que encarnava o Sistema Financeiro de Habitação, e sem observar a interpretação manifestada dia-a-dia pela jurisprudência dos Tribunais, já pacificada, os agentes financeiros da habitação vêm furtando-se a obedecer o comando maior do Plano de Equivalência Salarial, para impor aos mutuários um reajuste de prestação e saldo devedor com base nos índices de rendimento da Caderneta de Poupança.

Ora, o descompasso entre o salário do mutuário, que sabidamente encontra-se achatado e sem qualquer indexador legal a socorrê-lo, e o valor da prestação da "casa própria" reajustada em absurda sintonia com os índices de lucratividade dos investidores, cria um círculo jurídico vicioso e socialmente perigoso.

Na impossibilidade de destinar um crescente percentual de sua receita para pagamento das prestações do Sistema Financeiro da Habitação, o mutuário acaba tornando-se inadimplente, tendo seu nome inserido na lista de maus pagadores, correndo o risco de sofrer os efeitos da execução e acaba se vendo, juntamente com sua família, despejado do imóvel de sua residência.

Rapidamente o sonho da "casa própria" se transforma no pesadelo do "sem teto".

Muitos mutuários, ainda atônitos, tentam entender como o antigo BNH (Banco Nacional de Habitação), criado pelo poder revolucionário de 1964, foi esquecido e deteriorado pelos governos democráticos a ponto de permitir que meia dúzia de tecnocratas pudessem retirar do Sistema Financeiro de Habitação todo seu conteúdo social primitivo para reduzi-lo, irremediavelmente, a um emaranhado de normas menores com o objetivo de bem remunerar os investidores.

O resultado é que estão criadas e mantidas hoje todas as condições possíveis para inviabilizar o SFH e torná-lo temido pelos mutuários, além de contribuir para a desagregação familiar e estimular o favelamento nas cidades, desvirtuando, por completo, os princípios consagrados pelas leis 4380/64 e 4.595/64, que o instituíram e o regulam ainda hoje.

Estas leis foram recepcionadas pela Constituição Federal e, por ficção do seu artigo 192, promovidas a leis materialmente complementares, portanto, as normas ordinárias não poderiam alterar o princípio inserto nos dispositivos que criaram e orientaram o SFH.

Tanto assim que o artigo da norma jurídica que deu sustentação à utilização dos índices da poupança na atualização das prestações, e no saldo devedor dos contratos habitacionais, foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIn. N.º 493-0/DF. Na verdade, o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional, dentre outros, o art. 18, "caput" e §§ 1º e 4º da Lei 8.177, de 1º de março de 1991. Também a Lei 9.069/95, que dispõe sobre o Plano Real, o Sistema Monetário Nacional e estabeleceu as regras e condições de emissão do REAL, vedou qualquer reajuste de correção monetária em espaço de tempo inferior a um ano, portanto, claro, as prestações e o saldo devedor do sistema financeiro de habitação somente poderiam ser alterados em sintonia com os índices de reajustes salariais da categoria do mutuário, de doze em doze meses.

Mas, até agora nada disso sensibilizou o sistema financeiro e o governo federal. Se o mutuário quiser fazer valer os seus direitos terá que recorrer ao judiciário, juntar documentos, pagar custas, contratar advogado e esperar, esperar...

Contudo, as perspectivas são tentadoras, diariamente são julgados centenas de processos que examinam os índices cobrados pelos agentes financeiros nos reajustes de prestações e saldos devedores do Sistema Financeiro da Habitação, e com uma peculiaridade a mais, os pedidos dos mutuários contemplam ainda uma novidade, querem a devolução do valor cobrado indevidamente em dobro, conforme prevê o artigo 43 da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), e esta prática pode virar febre e resultar para os agentes financeiros um desembolso prejuízo, ora já estimado em mais de 50.000.000.000,00 (cinqüenta bilhões de reais).

Por outro lado os tribunais já decidiram também que o financiador não poderá executar a dívida ou retomar o imóvel enquanto estiverem sendo discutidos, na justiça, os valores das prestações e do saldo devedor dos mutuários. Em síntese, vai acabar a possibilidade de pressão por parte dos agentes financeiros e a demora dos processos será mais interessante para os mutuários.

Mas uma coisa é certa, não dá mais para o poder econômico apostar no medo e na inércia do cidadão, haja vista os outros cinqüenta bilhões que a Caixa Econômica Federal já está devolvendo para os trabalhadores, por ordem judicial, em centenas de milhares de processos que buscaram a recuperação dos expurgos inflacionários do FGTS.

Entretanto, sem qualquer dúvida, no final, todos irão perder. Ao tombar, o sistema financeiro de habitação fará muita falta, principalmente nesta época em que todos lutam pelo desenvolvimento e crescimento do país, sem falar que a facilidade e a viabilidade de disponibilizar a casa própria aos cidadãos de baixa renda sempre foi, e será ainda por muito tempo, o melhor caminho para substanciar aquele modelo social insistentemente reclamado e esperado ao longo da velha e da nova república.

* Advogado militante e presidente nacional da Associação Brasileira de Consumidores.